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Internet das plantas e animais na ótica regenerativa

O desenvolvimento tecnológico na produção de alimentos introduziu mudanças radicais no mundo rural. Confira!

Publicado em: - 12 minutos de leitura

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O desenvolvimento tecnológico na produção de alimentos, que permitiu a superação da fome no pós-guerra, introduziu duas mudanças radicais no mundo rural:

1) a separação das lavouras e cultivos florestais da pecuária, como resultado da especialização da agricultura;

2) o crescente aumento do uso de insumos externos às propriedades, com ênfase nos agroquímicos, numa estratégia competitiva “do nós contra eles”, sejam eles solos, pragas, doenças ou intempéries.

Com isso, efeitos benéficos dos microrganismos como a melhoria da disponibilidade de nutrientes e o controle de patógenos nocivos às plantas foram sendo, gradativamente, substituídos pelo uso de defensivos agrícolas e fertilizantes sintéticos (Fig. 1).

Figura 1. Os microrganismos e a “evolução” da produção agropecuária.

Figura 1

Fonte: Adaptado de Reganold & Wachter (2016).

Dessa forma, foram obtidos aumentos significativos na produção de alimentos que, com o ar do tempo, deixaram de ser acompanhados pela lucratividade dos produtores, devido a uma maior dependência de insumos e aumento dos custos de produção.

Como resultado, grande parte do “arsenal” de vida microbiana ativa, diversificada e presente no solo deixou de ser aproveitado nos sistemas produtivos, levando a perdas econômicas, sociais e ambientais. Isso porque, ao aplicar um inseticida, fungicida ou qualquer outro defensivo para eliminar pragas e patógenos são suprimidos, ao mesmo tempo, organismos benéficos, inimigos naturais ou inibidores do seu desenvolvimento.

No caso dos fungos, estas modificações afetam, além da disponibilização de nutrientes e da ocorrência de pragas e moléstias, a decomposição de resíduos de plantas e animais e a ciclagem de nutrientes como N, P, K, Ca, Mg e S (Fig. 2), com impactos marcantes sobre a eficiência de sua utilização e o equilíbrio do sistema.

Figura 2. Fungos e sua importância na interação solo-planta.

Fungos e sua importância na interação solo-planta.

Fonte: Adaptado de Bonfante & Genre (2010).

Isso porque, ao mesmo tempo que os fungos podem produzir substâncias químicas que protegem as plantas do ataque de bactérias e insetos nocivos, a diminuição da diversidade biológica do solo pode aumentar a predisposição das plantas à ocorrência de doenças, como fusarioses e antracnoses, com reflexos no enriquecimento e na produtividade do sistema (Fig. 3).


Figura 3. Fatores que influenciam a composição e atividade das comunidades microbianas.

Fatores que influenciam a composição e atividade das comunidades microbianas.

Fonte: Traduzido de Bani et al. (2018).

Mas afinal, o que são fungos?

Resumidamente, os fungos são organismos eucariontes, heterotróficos e uni ou pluricelulares. Se reproduzem, geralmente, por esporos e têm o corpo formado por uma rede de filamentos finos (hifas) que enovelados formam micélios. São imprescindíveis para a manutenção da saúde do solo, contribuindo com funções (Fig. 4), como:


Figura 4. Contribuições / funções dos fungos na microbiota do solo.

Contribuições / funções dos fungos na microbiota do solo.

Fonte: CropLife adaptado de Jansson e Hofmockel (2020).

1. Retenção de água no solo, beneficiando as plantas em ambientes de estresse hídrico;

2. Transformação de material orgânico presente no solo, como restos de plantas e animais, em biomassa rica em nutrientes;

3. Retenção de carbono no solo por meio da acumulação de biomassa e da produção de glomalina, uma glicoproteína recalcitrante, associada à formação e estabilização de agregados do solo;

4. Promoção do crescimento de plantas por associação a suas raízes.

 

Particularidades dos fungos micorrízicos

Os fungos micorrízicos formam associações simbióticas com as raízes das plantas, aumentando sua capacidade de absorção de nutrientes e água.

São classificados em três grupos:

1. Endomicorrizas ou fungos micorrízicos arbusculares (MA), cujas hifas penetram nas células das raízes;

2. Ectomicorrizas, nas quais as hifas crescem fora das células das raízes, formando um “manto” ao redor das raízes;

3. Ectoendomicorrizas, que apresentam características dos dois tipos anteriores.

 

Fungos, uso de nutrientes e estoque de carbono no solo

A distribuição no solo de elementos essenciais para o crescimento das plantas apresenta variações em diferentes escalas espaciais e influencia seu desempenho, produtividade e interações competitivas. Neste contexto, os fungos influenciam as condições do meio e vice-versa, em um processo dinâmico que resulta em diferentes arranjos do complexo solo-planta-microbiota, com destaque para a diversidade de plantas (Fig.5).


Figura 5. Diversidade de plantas e diferentes tipos de micorrizas.

Diversidade de plantas e diferentes tipos de micorrizas.

Fonte: Traduzido de Brundrett e Tedersoo (2018).

A interação planta-microrganismo pode potencializar a aquisição de nutrientes por meio dos fungos micorrízicos arbusculares, de forma direta, principalmente no caso do P, bem como, de forma indireta como no caso do N, tendo como “pagamento” apenas uma pequena parte dos carboidratos que a planta produz.

Simultaneamente, estes organismos podem influenciar o armazenamento de matéria orgânica por meio do acúmulo, processamento, transformação e estabilização de C orgânico no solo (Fig. 6), que estimula a infiltração e retenção de água e nutrientes, com consequente melhoria das condições de desenvolvimento das plantas.


Figura 6. Dinâmica da matéria orgânica do solo (MOS) mediada por fungos micorrízicos arbusculares (AM).

Dinâmica da matéria orgânica do solo (MOS) mediada por fungos micorrízicos arbusculares (AM).

Fonte: Traduzido de Wu et al. (2023).

Estes processos naturais são só uma pequena, mas indispensável, parte das alternativas que a natureza nos oferece para viabilizar a produtividade e a sustentabilidade da produção global de alimentos que se soma aos efeitos benéficos de insetos / pássaros polinizadores, de pequenos e grandes herbívoros sobre a produção vegetal e muito mais. Para participar deste “esforço conjunto”, os fungos dispõem de mecanismos, como:

O forrageamento de raízes e a “construção” de perfis de solo

A intensa proliferação de raízes em resposta à presença de fungos amplia o volume de solo explorado pelo sistema radicular, propiciando uma maior eficiência de uso dos nutrientes disponibilizados no ambiente de forma heterogênea (Fig. 7), o que potencializa sua adaptação e produtividade potencial.

Figura 7. Forrageamento de raízes e exportação de nutrientes sob a ação de microrganismos do solo.

Forrageamento de raízes e exportação de nutrientes sob a ação de microrganismos do solo.

Fonte: Traduzido de Adomako et al. (2022).

Por outro lado, o incremento do volume explorado por fungos e raízes resulta no aumento da matéria orgânica, infiltração e retenção de água no solo, com melhoria subsequente das condições de desenvolvimento das plantas e de seu sistema radicular.

Ou seja, se existe limite para o estoque de carbono em uma determinada condição e camada do solo, a quantidade de solo que pode ser formado depende da profundidade alcançada pelos sistemas radiculares das espécies de plantas presentes na área, o que eleva as plantas arbóreas e arbustivas a um outro nível de importância, tanto em ambientes naturais como em sistemas de produção.

A “internet das plantas e animais” e a circulação de recursos

A presença de micorrizas arbusculares nas plantas vasculares permite o o a manchas de fertilidade e poros do solo que lhes são iníveis. Na utilização de nutrientes, os fungos podem, adicionalmente, secretar enzimas como as fosfatases ou transportar em suas hifas bactérias solubilizadoras (Fig. 8) que promovem maior disponibilidade e transferência destes elementos entre plantas e camadas do solo.


Figura 8. Representação esquemática do transporte de bactérias solubilizadoras de P por hifas de fungos micorrízicos.

Representação esquemática do transporte de bactérias solubilizadoras de P por hifas de fungos micorrízicos.

Fonte: Traduzido de Jiang et al. (2021).

Como resultado, tem-se um maior fornecimento de nutrientes devido à homogeneização de sua distribuição horizontal e vertical no solo, que, por sua vez, impacta ou é impactado pelo transporte de água. Independente do que vem antes na indução do forrageamento de raízes (nutrientes, água ou outros estímulos), as hifas respondem pela obtenção de parte significativa da água que é transpirada pelas plantas.

Estes processos são mais intensos quanto maior a disponibilidade de material orgânico degradável no solo. Neste sentido, a presença de herbívoros bem manejados faz toda a diferença no sistema. Além da concentração de dejeções e urina, contribuem para uma maior fotossíntese e aceleração da dinâmica de renovação de raízes, por meio da desfolha / renovação da parte aérea, e seus cascos auxiliam no rompimento do selamento superficial, no caso de áreas de solo descoberto.

Estas diferentes constatações apontam para a grande oportunidade que representa o reencontro das lavouras e cultivos arbóreos com a pecuária, assim como, para a maior eficiência de processos simbióticos / de cooperação entre espécies, em relação a estratégias adaptativas baseadas somente na ampliação de sistemas radiculares.

Fungos na agricultura, pecuária e cultivos florestais

O crescente interesse mundial por cultivos mais sustentáveis, baseados na dinâmica clima-solo-planta-animal, aponta para a regeneração dos ecossistemas como estratégia de obtenção de alimentos mais saudáveis, concomitante à menor dependência do uso de insumos, aumento da renda agropecuária e promoção do bem-estar urbano e rural.

Neste contexto, a importância dos fungos micorrízicos é enorme, com reflexos na tolerância das plantas a estresses ambientais, absorção de água e nutrientes, e resistência a patógenos fruto da simbiose raiz-fungo (Fig. 9), que integra plantas cultivadas, quebra ventos e cordões vegetados e inspira desenvolvimentos tecnológicos.


Figura 9. Efeitos da colonização por fungos micorrízicos arbusculares.

Efeitos da colonização por fungos micorrízicos arbusculares.

Fonte: Traduzido de Jacott et al. (2017).

Assim, laboratórios de análises de solo têm oferecido testes de diversidade microbiana que permitem considerar o contexto biológico do sistema de produção, além da química do solo e do histórico de produtividade, como subsídio para a tomada de decisão.

A adoção de práticas como a rotação de culturas, plantio direto e introdução de animais em áreas de cultivo têm permitido tanto o incremento da quantidade como da eficiência dos fungos do solo. Em sistemas complexos, a integração de culturas de grãos / fibras, produção animal e cultivos arbóreos resultam no fornecimento por hifas de micorrizas de grande parte do fósforo, nitrogênio, potássio, zinco e cobre das plantas.

Mudanças no setor de insumos agrícolas propiciaram a disponibilização comercial de produtos de “linhas bio” que buscam acelerar a revitalização de áreas degradadas e melhorar a diversidade e o equilíbrio da vida microbiana do solo pelo estímulo ao desenvolvimento de fungos nativos do solo. Esses avanços têm permitido não somente aumentos de potencial produtivo, mas também, redução dos efeitos de metais pesados, estresse hídrico e baixa fertilidade, e incrementos de sequestro de carbono.

Como resultado, a produção agropecuária baseada no manejo conservacionista, apontado a décadas como o horizonte a ser alcançado no longo prazo, tem se tornado cada vez mais uma realidade, fruto do consenso de produtores e consumidores em prol dos processos naturais, da diversidade e da resiliência ao invés do uso de insumos (Fig. 10).


Figura 10. Aspectos da rizosfera em solos submetidos à agricultura convencional e conservacionista.Aspectos da rizosfera em solos submetidos à agricultura convencional e conservacionista.

Fonte: Traduzido de Johansson et al. (2004).

Os fungos e a nova (velha) agricultura

O estabelecimento de relações de cooperação entre fungos e sistemas radiculares, que viabilizou por milênios a formação dos solos férteis do planeta e a maior exploração / aproveitamento de nutrientes dos solos pelas plantas, hoje constitui uma alternativa efetiva de restauração dos processos naturais responsáveis pela saúde de solos, plantas e animais nos diferentes ecossistemas.

Seu efeito mais evidente é a redução da dependência do uso de fertilizantes e defensivos em sistemas agrícolas, pecuários e florestais, com consequente redução de custos e riscos de natureza socioeconômica e ambiental. Num círculo virtuoso, esta mudança, inicialmente invisível, representa uma verdadeira “revolução do bem”, na qual: (a) a maior atividade microbiana do solo gera (b) maior disponibilidade de recursos para as plantas que, por sua vez, dá origem a (c) uma maior atividade fotossintética / produção vegetal, com consequente (d) maior biodiversidade e equilíbrio dos ciclos biogeoquímicos, incluindo um maior uso / sequestro de carbono atmosférico (Fig 11).


Figura 11. Do micro ao macro: a mediação pelos fungos da dinâmica da matéria orgânica do solo.

Do micro ao macro: a mediação pelos fungos da dinâmica da matéria orgânica do solo.

Fonte: Adaptado de Wu et al. (2023).

Estes processos simples, que aportam respostas às três maiores convenções da ONU (Biodiversidade, Mudanças Climáticas e Desertificação), revertem a lógica da degradação e/ou minimização de impactos ambientais dos sistemas agrícolas baseados no preparo de solo, no uso de fertilizantes inorgânicos, herbicidas e pesticidas e na redução da diversidade.

Ao invés disso, a lógica da nova (velha) agricultura se baseia na restauração / melhoria dos diferentes ecossistemas ...

Pois, se sustentar não é mais suficiente ...

Venha conosco regenerar os diferentes ambientes!!!

 

Sobre o Instituto de Agricultura Regenerativa

O Instituto de Agricultura Regenerativa é uma associação privada, sem fins lucrativos, engajada na consolidação de um novo paradigma: a produção de alimentos saudáveis, ricos em nutrientes e sem resíduos de substâncias tóxicas pode promover a restauração de processos e relações naturais, gerando benefícios socioeconômicos e ambientais. Como tal, seus efeitos se assemelham ao que ocorre em ambientes naturais, onde os diferentes indivíduos interagem, de forma sinérgica e complementar.

Sem deixar de reconhecer a contribuição de práticas como o preparo mínimo do solo e o uso de culturas de cobertura em substituição aos agrotóxicos como contribuições efetivas da agricultura orgânica, a agricultura regenerativa dá um o à frente: incorpora uma abordagem holística da produção agrícola, embasada em princípios de hierarquia ecológica e práticas conservacionistas. Com isso, regeneração, manutenção e aumento da resiliência da produção de alimentos se aliam à melhoria da qualidade de vida de produtores e consumidores de alimentos, tanto do meio rural como de grandes aglomerações urbanas.

Mais informações, e o site: https://br.regenerativeagricultureinstitute.org

 

Colaboraram para esta publicação:

Sebastião Ferreira de Lima - Engenheiro Agrônomo, Mestre em Agronomia e Doutor em Fitotecnia.

Meire Aparecida Silvestrini Cordeiro - Engenheira Agrônoma, Mestre e Doutora em Solos.

Marcelo Abreu da Silva - Engenheiro Agrônomo, Mestre e Doutor em Ecoetologia.

Milene Dick - Médica Veterinária, Mestre em Agronegócios e Doutora em Zootecnia.

Cícero Célio de Figueiredo - Engenheiro Agrônomo, Mestre e Doutor em Agronomia.

Cléia Maria Siqueira - Médica Veterinária, Mestre em Zootecnia.

Derli Siqueira da Silva - Engenheiro Agrônomo, Mestre em Zootecnia e Doutor em Agronomia.

Vespasiano Borges de Paiva Neto - Engenheiro Agrônomo, Mestre e Doutor em Agronomia.

Homero Dewes - Farmacêutico, Mestre em Bioquímica e Doutor em Biologia.

 

Referências:

Adomako, MO, et al. Potential Roles of Soil Microorganisms in Regulating the Effect of Soil Nutrient Heterogeneity on Plant Performance. Microorganisms. 2022; 10(12):2399.

Bani, A, et al. The role of microbial community in the decomposition of leaf litter and deadwood, Applied Soil Ecology, 2018, 126:75-84.

Bonfante, P, Genre, A. Mechanisms underlying beneficial plant–fungus interactions in mycorrhizal symbiosis. Nat Commun 1. 2010, 48.

Brundrett, MC, Tedersoo, L. Evolutionary history of mycorrhizal symbioses and global host plant diversity. New Phytologist. 2018, 220(4):1108-1115.

CropLife. Microrganismos do solo: essenciais para produção agrícola. Conceitos. 2021.

Jacott, CN, et al. Trade-offs na simbiose micorrízica arbuscular: resistência a doenças, respostas de crescimento e perspectivas para o melhoramento genético. Agronomia. 2017, 7:75.

Jiang, F, et al. Arbuscular mycorrhizal fungi enhance mineralisation of organic phosphorus by carrying bacteria along their extraradical hyphae. New Phytologist. 2021, 230:304-315.

Johansson, JF, et al. Microbial interactions in the mycorrhizosphere and their significance for sustainable agriculture. FEMS Microbiology Ecology. 2004, 48(1):1–13.

Reganold, JP, Wachter, JM. Organic agriculture in the twenty-first century. Nature Plants 2. 2016, 15221.

Wu, S, et al. Soil organic matter dynamics mediated by arbuscular mycorrhizal fungi–an updated conceptual framework. New Phytologist. 2023, 242(4):1417-1425.

 

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Material escrito por:

Instituto de Agricultura Regenerativa

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Thereza Fonseca Quirico dos Santos
THEREZA FONSECA QUIRICO DOS SANTOS

MUTUM - MINAS GERAIS - PRODUÇÃO DE LEITE

EM 17/06/2024

Excelente texto, didático e informativo. Parabéns
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