A popularização das alternativas vegetais nas prateleiras dos supermercados reacendeu uma discussão polêmica: produtos veganos devem ou não usar termos como “leite”, “queijo” e “iogurte”? Embora a questão pareça apenas semântica à primeira vista, ela envolve segurança do consumidor, legislações internacionais, impacto econômico e diferenças nutricionais reais.
Apesar da crescente familiaridade com alimentos plant-based, termos como “leite de amêndoas” ou “iogurte de soja” sugerem, erroneamente, que esses produtos têm perfil nutricional similar ao dos laticínios tradicionais. A União Europeia, por exemplo, adotou o Regulamento (UE) 1308/2013, que restringe o uso da palavra “leite” apenas para produtos de origem animal. A medida visa evitar confusões no ponto de venda e proteger o consumidor de interpretações equivocadas.
Diferenças nutricionais são reais
Um ponto central na discussão é que produtos veganos e lácteos não são nutricionalmente equivalentes. De acordo com a pesquisa A comparative assessment of the nutritional composition of dairy and plant-based dairy alternatives, leites vegetais — mesmo quando fortificados — apresentam menor teor de proteínas, cálcio biodisponível, vitamina B12 e vitamina D. Esses nutrientes são naturalmente presentes no leite de vaca e cruciais para a saúde óssea, muscular e imunológica. Substituir lácteos sem o devido acompanhamento pode levar a deficiências nutricionais, especialmente em grupos vulneráveis como crianças e idosos.
Para Hayla Fernandes, consultora em marketing e experiência do cliente para produtos lácteos e proprietária do perfil Vaca Feliz Oficial, “As composições desses produtos são 100% diferentes do produto a que remetem, apenas isso já deveria ser suficiente para que qualquer legislação séria abordasse o assunto de forma mais inteligente”
O papel do marketing e a confusão do consumidor
Hayla diz que é preciso entender por que essas alternativas vegetais recorrem a nomes associados ao leite. Ela aponta que, em um primeiro plano, há um discurso de combate à exploração animal, mas também um apelo emocional que se apoia na culpa do consumidor. Nesse cenário, produtos “do bem” oferecem uma suposta redenção — como se, ao evitar leite, fosse possível neutralizar os "pecados" alimentares do dia.
Essa lógica segue a linha de outros alimentos vendidos como “saudáveis”, mesmo sem aporte nutricional real. O problema, para Hayla, é que o consumidor raramente reflete profundamente sobre o que consome. “A decisão de compra é algo complexo e muito rápido. Ela leva em consideração análises muito mais rasas e numerosas do que pontuais e profundas.”, analisa, referindo-se ao excesso de conceitos espalhados nas redes sociais sobre o que faz bem ou mal. Para ela, o consumidor médio acredita que pode compensar alimentos considerados ruins com outros tidos como bons, num raciocínio quase como uma soma de pontos positivos e negativos.
Nesse oceano de desinformação, a comunicação com o consumidor ainda é falha. Há um canal mal aproveitado quando se trata de explicar o que realmente é o leite e como ele se diferencia nutricionalmente das alternativas vegetais. Para Hayla, é urgente que o setor lácteo assuma um papel mais ativo na educação do público.
Hayla também alerta para o paradoxo da rotulagem que esses produtos muitas vezes produzem: enquanto o rótulo deveria informar o que é o produto, muitos nomes de alternativas vegetais geram justamente a dúvida sobre o que está sendo consumido. “É como comprar um shampoo não shampoo, um detergente não detergente”, provoca. Para ela, é absurdo que esse tipo de nomenclatura tenha se estabelecido quando, para qualquer outro produto, a pergunta mais óbvia seria: “Então o que é isso que estou comprando?”
Leite: um conceito legal e cultural
Em diversos países, “leite” é mais do que um produto: é uma definição legal e cultural consolidada há séculos. Na Europa, leite é definido por lei como “secreção mamária natural de animais”. Países como França e Turquia já proíbem o uso de nomenclaturas lácteas por produtos vegetais, justamente para proteger a identidade de alimentos tradicionais.
Hayla ressalta que o uso de termos de origem animal por produtos vegetais foi naturalizado com o tempo, especialmente pelo discurso da mídia que, por anos, criou vilões alimentares — como o leite integral, a carne vermelha e os ovos — sem necessariamente promover uma alimentação mais equilibrada com vegetais de verdade. “A questão é que a massa consumidora não foi levada para uma conclusão mais sensata como: Vamos adicionar mais legumes, verduras e balancear melhor nossas dietas. Não! A massa foi bombardeada com soluções industrializadas, afinal ninguém faz marketing de brócolis, mas se faz marketing de chá verde detox de caixinha”, ela pontua, criticando a substituição de alimentos naturais por soluções industrializadas.
Impactos econômicos no setor lácteo
O uso de termos lácteos por produtos veganos também afeta diretamente a cadeia de laticínios, que é submetida a rigorosas normas de qualidade, inspeção sanitária e controle nutricional. Permitir que produtos vegetais usem expressões como “leite vegano” ou “queijo vegetal” dilui o valor do leite de verdade e cria uma competição desigual. Além disso, muitos desses produtos não têm os mesmos custos regulatórios ou exigências técnicas, o que prejudica economicamente produtores e indústrias que seguem todas as normas legais.
Casos e iniciativas ao redor do mundo
Nos Estados Unidos, o projeto DAIRY PRIDE Act propõe restringir o uso de termos lácteos a produtos de origem animal, conforme definições da FDA (Food and Drug istration). O Reino Unido também adota posição semelhante: expressões como “queijo vegano” são proibidas por legislação específica, reforçando a importância de padronização nos rótulos e educação alimentar baseada em dados reais.
Precisão na rotulagem protege o consumidor e o mercado
A proibição do uso de termos como “leite” e “queijo” por produtos veganos não busca impedir a inovação ou a presença de alternativas vegetais no mercado. Pelo contrário: trata-se de garantir que o consumidor tenha informações claras e honestas para tomar decisões informadas — além de preservar a integridade de produtos que seguem exigências rigorosas de qualidade e segurança alimentar. Rotulagem precisa é sinônimo de respeito ao consumidor, à saúde pública e à justiça econômica.