O sabor picante, ardido ou pungente de alguns queijos maturados não é um gosto básico, como doce, salgado, amargo, ácido ou umami. Esses gostos são percebidos pelas papilas gustativas da língua e estão ligados à composição química dos alimentos. Já o picante é uma sensação trigeminal — ou seja, é captado por terminações nervosas na boca que detectam estímulos como dor, calor e pressão, e não por receptores de gosto.
Sensações trigeminais incluem, além do picante, o frescor da menta e o formigamento de bebidas gaseificadas. Essa sensação de picância, ardido ou pungente é semelhante à provocada por pimentas ou mostarda, mas, no caso dos queijos, decorre da presença de compostos específicos formados durante a maturação.
Como os ácidos graxos e a lipólise contribuem para a picância
A sensação picante, ardida ou pungente em queijos é causada principalmente pelos ácidos graxos de cadeia curta. Esses compostos se formam durante a lipólise, um processo no qual as gorduras do leite são quebradas por enzimas chamadas lipases, resultando na liberação de ácidos graxos livres. Esses ácidos possuem aroma intenso e sabor característico, capazes de estimular os receptores trigeminais e provocar a sensação de ardência.
Com o tempo de maturação, esse efeito tende a se intensificar, já que a atividade enzimática e microbiológica aumenta durante o envelhecimento do queijo, favorecendo a formação de compostos voláteis e a liberação de mais ácidos graxos livres.
Quando a picância é desejada — e quando vira um problema
Entre os processos relacionados à lipólise, destaca-se o ranço hidrolítico, um dos defeitos mais comuns em queijos. Esse problema ocorre devido à ação de lipases na gordura, liberando ácidos graxos livres de cadeia curta. Esses ácidos ajudam a formar compostos que afetam o cheiro e o gosto do queijo. Os de cadeia curta e média são os mais perceptíveis e podem trazer sabores como ranço (ácido butanoico), cheiro forte (ácido hexanoico) ou até algo que lembra cera ou sabão (ácido octanoico). Em pequenas quantidades, eles enriquecem o sabor, mas em excesso, podem estragar o perfil sensorial. Para evitar isso, é importante usar leite limpo e bem conservado, garantir uma ordenha higiênica e evitar agitações que danificam a gordura e facilitam a ação das enzimas.
Fatores que favorecem o sabor picante em queijos
Diversos fatores influenciam a formação desses compostos e, consequentemente, a intensidade do sabor picante, ardido ou pungente em queijos:
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Qualidade do leite: Leites com alta contagem de células somáticas geralmente indicam mastite, uma inflamação na glândula mamária. Isso faz com que o leite tenha mais enzimas naturais, como lipases e proteases, que aceleram a quebra de gorduras e proteínas, favorecendo o surgimento de sabores picantes. Além disso, quando o leite cru tem muitas bactérias psicrotróficas — que se desenvolvem mesmo em baixas temperaturas —, a quebra de gordura e proteína também aumenta. Isso resulta na formação de ácidos graxos de cadeia curta e outros compostos que causam a sensação de ardência, picância ou pungência.
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Tipo de coalho: O uso de coalho animal, especialmente o proveniente de cabrito, tem relação com a formação de sabores mais intensos e picantes. Isso ocorre porque esse tipo de coalho possui uma atividade enzimática elevada, que intensifica a proteólise e lipólise durante a maturação.
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Condições de maturação: A temperatura, a umidade, o tempo de maturação e os microrganismos presentes no ambiente influenciam diretamente os sabores do queijo. Ambientes úmidos e com temperatura moderada favorecem a ação de enzimas e microrganismos, o que aumenta a produção de ácidos graxos voláteis e aminas biogênicas — compostos ligados à sensação picante ou ardida. Certos microrganismos, como o Penicillium roqueforti (em queijos azuis) e o Brevibacterium linens (em queijos de casca lavada), aceleram a quebra de gordura e proteína, intensificando a formação desses sabores mais pungentes.
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Outros fatores: O tipo de leite (vaca, cabra, ovelha), o uso de culturas microbianas específicas e o manejo durante a fabricação também têm papel importante na expressão do sabor picante. Leites de cabra e ovelha, por possuírem maior teor de ácidos graxos de cadeia curta, são naturalmente mais propensos a desenvolverem sabores mais ardidos ou pungentes, especialmente quando combinados com maturação prolongada e atividade microbiana intensa.
O sabor picante, ardido ou pungente é característico e desejável em alguns queijos tradicionais, como os de leite de cabra ou certos queijos azuis, conferindo personalidade e complexidade ao produto final. Contudo, é fundamental compreender que a intensidade dessa sensação deve estar equilibrada com os demais atributos sensoriais do queijo, respeitando o perfil esperado para cada tipo.
A presença excessiva desse sabor pode ser indicativa de processos bioquímicos descontrolados, como atividade enzimática exacerbada ou contaminação por microrganismos indesejáveis, e deve ser evitada. Dessa forma, um controle criterioso da qualidade do leite, das condições de maturação e dos insumos utilizados é essencial para assegurar a excelência sensorial dos queijos maturados, mantendo o sabor picante como uma característica harmônica e valorizada.