O setor de laticínios tem enfrentado um cenário de rápidas transformações e desafios. Entre as tendências emergentes, destacam-se as inovações relacionadas a proteínas alternativas e substitutos sintéticos, que têm se tornado temas relevantes para o acompanhamento estratégico do setor. Esse panorama foi abordado na palestra intitulada “Substitutos lácteos sintéticos: cenário atual e perspectivas”, ministrada por Anna Benny, fundadora da Navigate, na Nova Zelândia, no Dairy Vision 2024.
De acordo com Anna, apesar de especulações sobre a possibilidade de o leite de vaca desaparecer completamente, o panorama atual revela um quadro mais complexo. Embora alternativas às proteínas de origem animal tenham recebido atenção considerável, poucas têm, de fato, conquistado relevância comercial significativa. Muitas enfrentam resistência devido a questões como alto grau de processamento, limitações nutricionais em comparação aos produtos de origem animal e baixa aceitação do consumidor. Apesar disso, deve-se evitar descartá-las prematuramente, pois algumas dessas tecnologias apresentam potencial em áreas específicas do mercado lácteo.
Produção de laticínios sintéticos
A replicação dos componentes do leite apresenta desafios técnicos e comerciais, mas também oportunidades. O leite, composto em 87% por água e 13% por sólidos (5% açúcar, 4% gordura, 3% proteína e 1% minerais), é, em teoria, mais fácil de ser reproduzido do que produtos como carnes, que possuem estruturas mais complexas. Há três principais métodos para replicar esses 13% de sólidos:
1. Produtos à base de plantas: alternativas vegetais, como leites de soja, coco e amêndoa, não são novidades e já estão disponíveis há décadas. Mais recentemente, empresas como a NotCo utilizam inteligência artificial para identificar combinações de componentes vegetais capazes de imitar as características sensoriais dos laticínios. Um exemplo é a parceria da NotCo com a Kraft, que resultou em produtos como o "não queijo", que tenta replicar o sabor e a textura do queijo convencional.
Além disso, a agricultura molecular permite modificar geneticamente culturas vegetais para produzir proteínas específicas, como a caseína, presente no leite e essencial para a elasticidade e sabor do queijo. Empresas como Mirüku e VelozBio já possuem iniciativas nessa área, utilizando sementes de cártamo para produzir caseína.
2. Fermentação de precisão: essa técnica, embora não seja nova, ganhou novas aplicações na produção de proteínas idênticas às de origem animal. Por exemplo, 87% do coalho usado na fabricação de queijos atualmente é produzido por fermentação de precisão. A fermentação de precisão utiliza microrganismos geneticamente modificados para produzir moléculas específicas, como proteínas do leite, a partir de substratos como açúcar.
Empresas como Amyris e TurtleTree estão avançando nesse campo. Enquanto Amyris opera no Brasil com produtos como adoçantes e proteínas bioativas, a TurtleTree está focada na produção de lactoferrina – uma proteína presente em pequenas quantidades no leite, mas com alto valor agregado. Esses avanços podem tornar a fermentação de precisão uma alternativa viável para a produção de ingredientes lácteos, especialmente em nichos de alto valor.
3. Agricultura celular: atualmente, não existem produtos no mercado que sejam produzidos por meio dessa tecnologia. A agricultura celular baseia-se na utilização de células, como as provenientes do úbere, empregando técnicas avançadas para desenvolver o que pode ser descrito como um úbere artificial. Essas células são então cultivadas em condições específicas que permitem a produção de leite. Embora essa possibilidade já tenha sido comprovada cientificamente, a tecnologia ainda enfrenta desafios, especialmente no que diz respeito à escalabilidade e à viabilidade comercial.
A análise das áreas de maior e menor risco para substituição dos laticínios tradicionais revela importantes reflexões. Produtos como leite em pó e proteínas individuais (whey, caseína) estão entre os mais vulneráveis, pois podem ser replicados com maior facilidade por tecnologias como a fermentação de precisão. Fórmulas infantis também apresentam risco, caso a agricultura celular se torne viável comercialmente.
Por outro lado, produtos como leite líquido, queijos especiais e gorduras lácteas (manteiga, creme de leite) possuem menor probabilidade de substituição devido à sua complexidade estrutural e sensorial.
Um desafio para o setor
Anna traz como exemplo, a história da lã na Nova Zelândia que serve como um alerta para o setor de laticínios. Assim como as fibras sintéticas substituíram a lã em diversas aplicações, proteínas alternativas podem ganhar espaço em segmentos específicos da cadeia láctea. Na Nova Zelândia, onde grande parte da produção leiteira é destinada à exportação de ingredientes de commodities, o risco é particularmente elevado.
Por outro lado, mercados como o brasileiro, que têm um consumo mais direcionado a produtos lácteos integrais, enfrentam menor vulnerabilidade. Ainda assim, é essencial que todos os agentes do setor acompanhem de perto essas tendências e invistam em pesquisa e desenvolvimento para se adaptarem ao cenário em constante transformação.
A busca por inovação e sustentabilidade será importante para garantir a relevância e a competitividade da indústria de laticínios no futuro.